Dorsal Atlântica entrevista/ A Certain Ratio disco novo/ Banksy documentário
A Dorsal Atlântica é uma das mais influentes e combativas bandas da história da música pesada brasileira. Acompanho a banda desde 1985 e desde os anos 90 tenho uma relação com o Carlos e a Dorsal que transcende o fato de ser um fã, pois além de já ter feito diversos projetos gráficos para a Dorsal, sou muito amigo dele. Nessa nova edição da minha newsletter, Carlos Lopes (guitarrista/vocalista/letrista/ilustrador e dono da Dorsal) gentilmente me concedeu essa entrevista.
1-) O que te motivou a retornar com a banda em 2012?
Obrigado pela pergunta: o meu filho. Se a espiritualidade me deu o maior presente da vida eu queria retribuir de alguma forma. Já relatei essa história algumas vezes, mas resumidamente uma vizinha do prédio, ex-dona de agência, me contou sobre uma novidade do exterior: a captação de recursos entre apoiadores para financiar projetos. Senti que eu era a pessoa certa porque tocamos em 1998 no festival Monsters of Rock graças a 35 mil assinaturas coletadas pelo correio (pré-internet). A banda sempre foi “de baixo para cima”, nunca foi imposta por gravadoras ou mídia e financiamento coletivo parecia a luva perfeita na mão certa. Meu filho estava previsto para nascer em outubro de 2012. Comecei a campanha em abril ou maio do mesmo ano. Decidi que poderia gravar novos discos, mas não queria tocar, isso já seria um pouco demais. E que os novos discos deveriam ser cada vez mais políticos e brasileiros e nunca old-school. E como que por milagre, e muita luta, atingimos a meta, arrecadamos todo o valor necessário em 2 meses. E também ali comecei a perceber que um novo mundo nascia, mas que haveria reação. Como de praxe... Algumas pessoas me escreveram para dizer que eu estava destruindo o metal, destruindo a relação entre selos e artistas. Coitados... Acredito que hoje, esses mesmos críticos devem estar fazendo as suas campanhas se não estiverem bancando discos e shows com a verba do papai e da mamãe.
Meu filho nasceu no final da gravação do disco. E para brindar com boas sincronicidades, Gael nasceu exatamente um mês após o meu nascimento. Seria o início de novas alegrias e dificuldades. A vida em movimento... Ainda houve tempo de uma foto do recém-nascido entrar na última página da reeditada biografia Guerrilha, também financiada pela campanha.
2-) Você sempre foi uma pessoa de se posicionar nas questões políticas e tenho percebido que mais recentemente esse aspecto tem sido muito forte na banda. O quanto as questões políticas têm te influenciado e motivado com a banda?
A banda retornou em 2012 com essa condição: ser ativamente política. Voltar para agradar as pessoas com fantasias do passado ou reforçar o lugar-comum nunca foi para mim. Eu já tinha um bom conhecimento em fazer o inesperado e ir cada vez mais sendo considerado não-comercial. Nunca vendemos bem, e a situação “piorou” quando decidi gravar a nossa primeira ópera no início da década de 1990, o disco Searching for the Light. Um disco audacioso mas refratário ao gosto médio. As pessoas queriam o simples e eu dava o complicado. O show de lançamento deste álbum no Circo Viador no Rio foi louco. A casa lotada e tocamos com o Ratos de Porão, mas as pessoas não estavam escutando o que eu tocava ou falava, era demais para a cabeça adolescente média. Estava consciente e firme. Nunca faria de outra forma e nunca teria cedido. O eu em 1989 amadureceu até 2012, mas não perdeu as características que considero importantes. Searching sempre foi um disco político, mas embalado em uma história distópica de ficção científica.
3-) Como foi a opção de usar a guitarra baiana? Você gosta de músicos ligados a esse movimento? Gosta de guitarrada paraense?
Retornamos em 2012 com nova musicalidade, nova lírica e na minha cabeça foi nascendo a ideia de tocar guitarra baiana, simplesmente porque era um instrumento brasileiro. Pensei estritamente na Bahia, apesar de haver outros instrumentos no país. Pensei no Armandinho, Cor do Som, Novos Baianos. Cláudio Moreira, um amigo baiano, fã do Mustang (o que me aprazia) me apresentou ao luthier Fabio Batanj. Não há cordas e nem instrumentos desse tipo à venda no Rio. Por isso, a guitarra deveria nascer em solo soteropolitano. Desenhei uma flying-V em formato pequeno e Batanj a construiu. O instrumento chegou para a gravação do Canudos em 2017. Não consegui gravar todo o disco com a baiana – apelidada de Matadeira (por causa de Canudos), pois não tinha intimidade mas gravei todo o Pandemia com a Matadeira em 2020. Ainda não imaginava voltar a tocar ao vivo e nem pensaria que não mais tocaria guitarra grande, apenas a pequena notável baiana.
4-) A Dorsal tem adotado uma sonoridade bem brasileira. Como você pensou nessa nova sonoridade num gênero reconhecidamente mais conservador e euro centrista como o Heavy Metal?
Acredito ser uma evolução natural, pelo menos para mim. Sou eternamente insatisfeito e isso é bom, me impulsiona – se não virar fixação improdutiva. Sou apaixonado pelo Brasil, mas pelo Brasil que me apetece, principalmente o interior, a cultura da música regional e das lendas supernaturais. Quase cursei história e arqueologia com 18 anos, faltou pouco. Tenho pouco interesse pelo o que vem aletoriamente do exterior, preciso encontrar conexões com o chão que piso.
Eu tinha 17 anos quando decidi que ajudaria a fundar o Heavy Metal no Brasil. Mas um Heavy brasileiro, quase tropicalista. Tive apoio zero, e aí percebi pela primeira vez como eu era, como era a minha personalidade. Comecei a compor e pouco a pouco percebi que fazia tudo diferente, a forma de tocar, as letras, as melodias, a métrica. E como ninguém me impediu, segui adiante.
O Dividir e Conquistar representa o pináculo dessa fase dos anos 80, um disco humanista, sensível, consciente, social, que foi pouco compreendido em seu pré lançamento e até após o lançamento. Todos queriam mais do mesmo. Mandei todo mundo catar coquinho e mais uma vez, segui adiante. E onde o álbum teve melhor receptividade? São Paulo. Aí ganhamos vida eterna.
A mesma evolução natural e auto compreensão me conduziu em 2017 a escrever apenas melodias nordestinas. E este é o Canudos. O meu disco favorito da Dorsal. O mais brasileiro de todos os discos de rock pesado e metal produzidos no Brasil. Sem ensaio, na garra e amparado pelos escravos, pelos canudenses. O meu centro espírita se transformou em disco, o terreiro entrou na casa de centenas de “metaleiros” para desgosto dos colonizados. E que orgulho. Eparréi Oya!
5-) Vocês com a renovação sonora conseguiram também renovar o público. Como tem sido os shows e o que te levou a voltar a fazer shows?
O responsável tem nome: nosso baterista Braulio Drummond. Ele tocou comigo na fase final do Mustang até 2008 (nosso último show foi com Os Titãs em Araraquara, SP). Ele me ligou em 2019 ou 2020 e meu filho não me deixava falar com ele. Ele me perguntou se eu aceitaria voltar a tocar. Para dar uma resposta, pedi primeiro que ele gravasse o Pandemia, um disco que como o Imperium e o Canudos não houve ensaio. Era ouvir a demo e fazer. Ele mandou bem no estúdio e me fez uma proposta profissional para sair de casa e voltar aos palcos. E assim tem sido há dois anos. Já recebemos propostas para exterior mas declinei.
Nitidamente há 3 públicos: o dos anos 80; o dos anos 90 (era MTV) e o das campanhas (2012 até hoje). Tenho 62 anos, sou um sobrevivente mas o que mais me orgulha é nunca ter cedido um palmo. Não estou nessa para ser celebridade, repetir clichês de capeta, estou nessa para libertar mentes e espíritos.
6-) “Imperiun”, “Canudos” e “Pandemia” e as Histórias em Quadrinhos que você produziu recentemente tem uma excelência gráfica impressionante? Como tem se desenvolvido esse seu lado artístico de ilustrador e desenhista?
Meu primeiro sonho foi ser desenhista com dez anos. Não me esforcei, desisti e conheci os Beatles. Foi meio assim, mesmo. Aí decidi que queria aprender guitarra. Minha mãe, sensatamente, aconselhou a tocar violão primeiro. Ela me deu um, se não me engano, mas eu queria guitarra e deixei o violão de lado. Ele até tinha um captador mas nem isso adiantava. Juntei as moedas e comprei uma guitarra brasileira Phelpa modelo Apache, da Jovem Guarda, na comunidade do Vidigal no Rio. Era final dos anos 1970. Mamãe ficou louca, queria jogar a guitarra fora, ou me jogar fora (não estou brincando). Fizemos um acordo, meu irmão e eu, com nosso pai: não viraríamos viados e nem “cheiraríamos maconha”. Foram os primeiros passos para a Dorsal alguns anos depois. E nunca mais desenhei com gosto, havia desistido, até que comecei a desenhar em cadernos com caneta bic durante a gravação do 2012. Aquilo foi dando ideia. Dois anos depois, na campanha para o Imperium incluímos a impressão da História da Dorsal em Quadrinhos. E aí não parei mais. Hoje, uma década depois, já desenhei para documentários, sindicatos, exterior e trabalho em 2024 na novela gráfica O Condomínio que conta a história do meu bairro no Rio, dos vizinhos (entre eles Raul Seixas e do político assassinado pela ditadura, Rubens Paiva) da minha família com reflexões sobre vida e morte.
7-) Ao mesmo tempo que a Dorsal tem apontado para o futuro você tem revisitado o passado com diversas reedições e lançamentos de material do passado que estavam inéditos como por exemplo o histórico show de 1986 de Juiz de Fora. Tem mais coisas para saírem desse baú?
Na verdade não sou eu que reedito, não tenho verba para isso. O Dividir e Conquistar de 1988 acabou de ser maravilhosamente relançado pela Rocinante/Três Selos. Foi uma negociação de mais de um ano, muito profissionais, fiquei muito feliz. O disco está lindo, lindíssimo. Gostaria muito que meu irmão tivesse visto e recebido o disco, mas assim é a vida. Nem tudo acontece como sonhamos. Mas para os apoiadores é bom saber que vem bem mais e melhor, adiante.
8-) A discografia da Dorsal não está disponível em nenhum serviço de streaming. Qual o motivo dessa opção?
Uma decisão simbólica e é a minha cara. Sou dono da maioria do catálogo. Sei que impeço que a maioria das pessoas tenha acesso à obra, mas tem sido assim. Não há muito o que explicar. Talvez um dia...
9-) O “Dividir e Conquistar” foi reeditado em vinil. Você já parou para pensar que em termos políticos esse conceito de dividir e conquistar está super atual?
É o que mais leio: como o disco é atual. Mas acima dos elogios, há uma conclusão triste nessa história toda: o mundo nada mudou em 36 anos. Eu até te diria que piorou. Nunca piorou para uma família negra, porque sempre foi ruim, mas estamos falando da maioria do público de metal: adolescente branco. Vivi a ditadura e naquela época ninguém tinha orgulho de falar “amo Ustra”. Só uma alma amaldiçoada faria isso. A pessoa que apoiava a ditadura nos anos 1970 se calava envergonhada. Assassinatos, roubo, corrupção, mentiras vindas dos quartéis. As pessoas tinham vergonha de parecerem com aquele lixo verde oliva. Hoje é outra história: não há mais vergonha. Idosos e jovens de todas as etnias expõem as maiores vilanias porque pela primeira vez estão sendo sinceros. Sinceras em seu racismo, e idiotia. O Brasil profundo. Não há seres humanos entre 30 a 50% da população. São animais que dividiram e conquistaram.
10-) Em 1999 você lançou o disco “Terrorism Alive” e em 11 de setembro de 2001 teve aquele ataque terrorista que foi transmitido ao vivo para o mundo todo. Foi premonição ou sincronicidade?
Essa curiosa pergunta me permite entrar em outra seara. Você sabe que trabalhei em centros espíritas e esotéricos por mais de 2 décadas. Mediunidade não te abandona, ela se adapta. Já lancei um livro relatando várias dessas vivências, mas hoje não relataria da forma que fiz porque simplesmente – e eu entendo – as pessoas não acreditam, algumas fazem pouco caso, menosprezam. O que também é natural.
O Pandemia me foi pedido por uma jovem entidade escrava ao lado da minha cama enquanto eu acordava. A entidade deixou claro: - É uma dívida. Você tem que fazer e vamos te proteger.
Sobre a questão das datas e sincronicidades, há outras histórias: nosso primeiro show ocorreu com o Sepultura em 12 de fevereiro em 2022 no Circo Voador, Rio. Ali, de volta ao palco decidi que não me interessava agradar ou manter viva a chama do metal. Ali nasceu um novo formato de apresentação, música mais talk show humanista e político. E eu disse em alto e bom som: “Que a Mãe Rússia derrote seus inimigos!”.... Menos de duas semanas depois, a Rússia invadiu a Ucrânia... Premonição? Vidência?
Até prefiro parar por aqui, citando apenas casos da banda porque tive várias outras premonições que ocorreram envolvendo mortes nesses últimos anos. É algo muito difícil de lidar.
11-) Você pensa em fazer uma versão ampliada do livro “Guerrilha”?
Talvez. Essa ideia se tornou mais difícil com o desencarne do meu irmão em 2023. Perdi o interesse.
12-) Você já está trabalhando no novo disco? Pode adiantar alguma coisa?
“Nunca diga nunca”, não é?... No começo da Dorsal eu não entendia o sentido desta frase. A vida me fez entendê-la para o bem e para o mal. Hoje, em 2024 eu te diria que não vejo possibilidade algum de gravar um novo disco para a Dorsal. Conscientemente eu não faria uma campanha agora para arrecadar talvez 100 mil reais para um disco. Mas há sim, um álbum na minha cabeça, algumas canções escritas para um trabalho que não pode ser para a Dorsal. Mas isso é outra história.
13-) O que você tem ouvido ultimamente e quais suas inspirações musicais atuais?
Há muitas décadas não ouço música como escutava até o começo da década de 2000. Há dezenas de explicações, várias bem pessoais. Pesa demais o cansaço da repetição de harmonias e fórmulas. E também não é muito saudável viver de passado. Até escrevi uma canção sobre isso no álbum Dividir e Conquistar. Mas não quero terminar a entrevista com uma resposta “pra baixo”... Vamos mudar um pouco o tom... Vamos dizer que troquei o espaço que a música tinha em minha vida e cedi mais espaço, bem mais espaço ao trabalho de quadrinista e ilustração. A vida mostra que não há espaço vazio. Nada se perde, tudo se recria. E sigo em frente.
Lançado no dia 19 de abril, sexta-feira passada, “It All Comes Down to This” é o décimo terceiro na discografia, terceiro nesta década e o mais recente álbum da lendária banda de Pós Punk/ Disco Punk/ No Wave de Manchester formada em 1977. É um ótimo disco. O trio Jez Kerr, Martin Moscrop e Donald Johnson juntou o usual Pós Punk funkeado, elementos de música eletrônica e o principal, um perfeito equilíbrio entre nostalgia e contemporaneidade, esse último elemento é cortesia da produção do Dan Carey (Fontaines DC/Wet Leg/Black Country New Road).
A dica da semana é o excelente documentário de 2020, “Banksy and the Rise of Outlaw Art”. Nesse documentário é traçada a história do Banksy com a arte do Grafite e as conexões com a cultura, música e política daquela época. Tem no YouTube.